Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro -
Porque o presente é todo o passado e o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
(excerto)
Análise
A palavra ode, de origem grega, significa cântico laudatório ou de exaltação de uma pessoa, instituição ou acontecimento. Com o epíteto de Triunfal, pretendeu o poeta não só vincar, mas também hiperbolizar o significado de ode, apontando para qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma, imprimindo-lhe uma sugestão de força ou exagero, em nítida coerência com a estética do Futurismo / Sensacionismo.
A Ode Triunfal canta o triunfo da técnica, as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial, o comércio, os escândalos da contemporaneidade... Sentir tudo de todas as maneiras é o ideal esfuziantemente revelado pelo sujeito poético, sentir tudo numa histeria de sensações, que lhe permitam identificar-se com as coisas mais aberrantes («Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/ Ser completo como uma máquina!»).
A exaltação da civilização moderna
Recursos expressivos
O poema constitui uma ruptura com a lírica tradicional, como o confirmam os seguintes aspectos:
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro -
Porque o presente é todo o passado e o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
(excerto)
Análise
A palavra ode, de origem grega, significa cântico laudatório ou de exaltação de uma pessoa, instituição ou acontecimento. Com o epíteto de Triunfal, pretendeu o poeta não só vincar, mas também hiperbolizar o significado de ode, apontando para qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma, imprimindo-lhe uma sugestão de força ou exagero, em nítida coerência com a estética do Futurismo / Sensacionismo.
A Ode Triunfal canta o triunfo da técnica, as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial, o comércio, os escândalos da contemporaneidade... Sentir tudo de todas as maneiras é o ideal esfuziantemente revelado pelo sujeito poético, sentir tudo numa histeria de sensações, que lhe permitam identificar-se com as coisas mais aberrantes («Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/ Ser completo como uma máquina!»).
A exaltação da civilização moderna
- O poema começa com uma estranha iluminação de lâmpadas eléctricas. Despertando em sobressalto e em sonhos febris, o sujeito poético reconhece-se transportado para o meio de uma fábrica em actividade. O homem adoentado, enfraquecido pela febre, exposto a estes barulhos, é subitamente arrebatado pelas oscilações dos motores e a sua cabeça abrasada começa a vibrar também. Diante dos seus olhos acumula-se uma multiplicidade de impressões e todos os seus sentidos estão despertos: «Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, / De vos ouvir demasiadamente perto, / E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas sensações...».
- A fábrica aparece então como motivo inspirador para a homenagem a esta civilização moderna, que submerge o eu poético, nevrótico e fragilizado («tenho febre»; «fúria fora e dentro de mim», «meus nervos», «arde-me a cabeça»). É este universo de «lâmpadas eléctricas», «rodas», «engrenagens», «máquinas», «correias de transmissão», «êmbolos» e «volantes» que o faz sentir-se simultaneamente incomodado e atraído pela ruidosa dinâmica dos «maquinismos em fúria».
- A aguda sensibilidade do sujeito poético revelada na denúncia do lado negativo e desumano da civilização moderna é uma atitude literária, em que a perfeição e a força das máquinas parecem ser, afinal, compensações para os seus próprios fracassos e para a sua inadaptação, que irão marcar a última fase poética de Álvaro de Campos.
Recursos expressivos
O poema constitui uma ruptura com a lírica tradicional, como o confirmam os seguintes aspectos:
- As metáforas e as imagens deste texto evidenciam a íntima relação do sujeito poético com o mundo mecânico e industrial, permitindo até a sua plena integração na civilização moderna
- As enumerações traduzem o frenético desejo do sujeito poético de sentir tudo de todas as maneiras, registando de forma aparentemente caótica as sensações que experimenta
- As anáforas expressam a sucessão caótica dos fenómenos da civilização industrial, permitindo ao sujeito poético acompanhar o seu ritmo alucinante e vigoroso
- Os neologismos e os estrangeirismos traduzem a ligação do sujeito poético às inovações da modernidade e à universalidade do progresso técnico
- A adjectivação traduz o excesso de sensações
- Os advérbios de modo
- As apóstrofes